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24 de Abril de 2024
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    Artigo - O direito dos filhos à privacidade e sua oponibilidade à autoridade parental - Por Elisa Costa Cruz

    Elisa Costa Cruz - Mestranda em Direito Civil pela UERJ, Defensora Pública no Estado do Rio de Janeiro, Membro do IBDFAM.

    RESUMO: A partir do confronto entre a autoridade parental e o direito das crianças e dos adolescentes à privacidade, buscar-se-á uma solução mediadora entre essas situações subjetivas. Cuida-se de tentativa de avançar na mudança de orientação do conteúdo da autoridade parental em direção ao aprofundamento da melhor tutela dos interesses das crianças, jovens e adolescentes, discutindo a possibilidade de um espaço de atuação reservado a estes atores sociais.

    Palavras-chave: Criança. Adolescente. Privacidade. Autoridade parental.

    Abstract: The work analyses the conflict between family power and the children's and adolescent's rights to privacy. It's an attempt to step up on the subject of family power in direction to better understanding and protection of children's rights.

    Keywords: Childhood. Adolescents. Privacy.

    SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. A privacidade como direito fundamental. 3. O modelo familiar na atualidade: a autoridade parental como situação subjetiva complexa. 4. A função da autoridade parental. 5. Conclusão. 6. Referências.

    1. Introdução:

    Em maio de 2010, Denise New foi condenada por um Tribunal na cidade de Arkansas -

    Estados Unidos da América a indenizar seu filho a título de danos morais e a não se aproximar dele, pois teria se aproveitado da ausência do filho de seu próprio quarto para ingressar em sua página pessoal em uma rede social e enviado mensagens denegrindo sua imagem.

    A notícia dessa condenação trouxe a debate o conflito entre o exercício da autoridade parental e o direito dos filhos a terem resguardado um espaço reservado apenas a eles, intangível de seus pais.

    A questão posta para debate possui implicações práticas relevantes: é lícita a conduta do pai, da mãe, do tutor ou do curador que faz busca na mochila ou do armário do respectivo filho, tutelado ou curatelado? É possível que os pais leiam o diário dos filhos ou rastreiem e controlem os sites visitados por seus filhos?

    Sobre essa tensa relação serão tecidas considerações a partir de duas perspectivas: a privacidade como direito fundamental; e, a configuração da família, a finalidade e limite da autoridade parental.

    2. A privacidade como direito fundamental:

    Quando Warren e Brandeis escreveram "The right to privacy"1 em 1890, privacidade era associada ao direito de propriedade (portanto, com conteúdo nitidamente patrimonial), consistente no direito estar sozinho ("the right to be left alone ").

    Com a mudança de paradigma ocorrida no após a Segunda Guerra Mundial, em que o homem foi realocado no centro dos sistemas jurídicos, em um processo de valorização da dignidade da pessoa humana e subordinação do ordenamento a este valor, a compreensão de privacidade como dado patrimonial foi paulatinamente abandonada e substituída por uma concepção existencial de privacidade.

    De modo a atualizar o conceito clássico de privacidade, Stefano Rodotà afirma que2:

    Depois da definição histórica feita por Warren e Brandeis - "o direito de ser deixado em paz" - outras definições foram desenvolvidas para espelhar diferentes clamores. Num mundo onde nossos dados estão em movimento incessante, "o direito a controlar a maneira na qual os outros utilizam as informações a nosso respeito" (A. Westin) torna-se igualmente importante. De fato, coletar dados sensíveis e perfis sociais e individuais pode levar à discriminação; logo, a privacidade deve ser vista como "a proteção de escolhas de vida contra qualquer forma de controle público e estigma social" (L. M. Friedman), como a "reivindicação dos limites que protegem o direito de cada indivíduo a não ser simplificado, objetivado, e avaliado fora de contexto (J. Rosen). Já que os fluxos de informação não contêm somente dados"destinados para fora"- a serem mantidos longe das mãos alheias -, mas também de dados"destinados para dentro"- sobre os quais a pessoa talvez queira exercer o"direito a não saber"-, a privacidade deve ser considerada também como"o direito de manter o controle sobre suas próprias informações e de determinar a maneira de construir sua própria esfera particular"(S. Rodotà). Ao reivindicar a autonomia do indivíduo na sociedade de informação, uma decisão histórica da Corte Constitucional alemã de 1983 reconheceu a"autodeterminação informativa".

    Danilo Doneda igualmente destaca uma nova concepção de privacidade caracterizada como instrumento de valorização da esfera privada e a inserção da pessoa no meio social3:

    A privacidade nas últimas décadas passou a relacionar-se com uma série de interesses, o que modificou substancialmente o seu perfil. Chegamos assim ao ponto de verificar, de acordo com a lição de Stefano Rodotà, que o direito à privacidade não se estrutura mais em torno do eixo"pessoa-informação-segredo", no paradigma da zero-relationship , mas sim em um eixo"pessoa-informação-circulação-controle".

    Nesta mudança, a proteção da privacidade acompanha a consolidação a própria teoria dos direitos da personalidade e, em seus mais recentes desenvolvimentos, contribui para afastar uma leitura pela qual sua utilização em nome de um individualismo exarcebado alimentou o medo de que eles se tornassem o" direito dos egoísmos privados ".

    Algo paradoxalmente, a proteção da privacidade na sociedade da informação, tomada na sua forma de proteção de dados pessoais, avança sobre terrenos outrora não proponíveis e induz a pensá-la como um elemento que, antes de garantir o isolamento ou a tranquilidade, proporcione ao indivíduo os meios necessários para a construção e consolidação de uma esfera privada própria, dentro de um paradigma de vida em relação e sob o signo da solidariedade - isto é, tenha um papel positivo na sua própria comunicação e relacionamento com os demais. Tal função interessa à personalidade como um todo e eventualmente demonstra-se mais pronunciada quando fatores como a vida em relação e as escolhas pessoais entram em jogo - como nas relações privadas, também no caso da política e na própria vida pública.

    A importância do direito à privacidade foi reconhecida pelo legislador constituinte de 1988, o qual inseriu no inciso X do art. da Constituição da República a intangibilidade da vida privada:"são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação", que, por sua vez, constitui limite à liberdade dos meios de comunicação (art. 220, § 1º, da Constituição da República).

    A inclusão da privacidade no rol do art. da Constituição da República torna inquestionável sua natureza de direito fundamental, o que atrai um regime jurídico diferenciado no que tange ao seu exercício e eventuais limites e restrições. A propósito, não há como questionar a sua titularidade por qualquer pessoa, independentemente de cor, raça, idade, religião, ideologia ou nacionalidade, na forma do caput do art. da Constituição.

    Apenas para que fique indene de dúvidas que crianças, jovens e adolescentes são titulares de direitos fundamentais (assim, fazem jus à privacidade), razão pela qual há que atentar para a Convenção sobre os Direitos da Criança, internalizada pelo Decreto n. 99.710/1990, reconhece, em seu preâmbulo, que"toda pessoa possui todos os direitos e liberdades neles enunciados, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, crença, opinião política ou de outra natureza, seja de origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição"4.

    Os limites e restrições aos direitos fundamentais apresentam um interessante conflito. Os direitos fundamentais estão diretamente vinculados à dignidade da pessoa humana, o que os tornaria imunes à interferência, pois do contrário haveria violação ao valor mais fundamental de todo o ordenamento. Contudo, não há direito absoluto, pois ao menos a influência indevida na esfera jurídica de terceiro está protegida pelo ordenamento; isto é, o componente da solidariedade na dignidade da pessoa humana impede que o exercício de direito fundamental seja desvinculado da circunstância de que o ser humano vive em sociedade.

    A solução deste conflito há que ser resolvida através do princípio da proporcionalidade, de modo a resguardo o núcleo essencial ou o âmbito de proteção da norma constitucional, isto é, o que é efetivamente protegido pela norma constitucional5.

    Para tanto, extraem-se três subprincípios (ou critérios) para aferição da proporcionalidade: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. A adequação exige a relação de pertinência entre a medida e o fim perseguido; a necessidade determina que se adotem os meios menos gravosos para atingir o objetivo; e, a proporcionalidade em sentido estrito consiste na aferição de que o ônus seja inferior ao benefício almejado6.

    A restrição à privacidade há que observar o princípio da proporcionalidade, devendo atentar para a relação entre meios e fins, bem como à menor onerosidade do sacrifício, para atender às normas constitucionais.

    Este raciocínio aplica-se indistintamente a todas as pessoas, sejam elas maiores de 18 anos ou não, uma vez que a todas as pessoas é assegurada a titularidade de direitos fundamentais.

    3. O modelo familiar na atualidade: a autoridade parental como situação subjetiva complexa:

    O modelo familiar do Código Civil de 1916, e anterior à Constituição da República de 1988, foi estruturado a partir da autoridade paterna, que subordinava mulheres e crianças a si, necessariamente matrimonializada7. Com inspiração feudal, a família compunha um núcleo econômico e produtivo, cujos membros, inclusive crianças e adolescentes, ressalvadas as mulheres, a quem competiam às atividades domésticas, contribuíam com seu trabalho8. A família como unidade econômica era tutelada por si própria, sendo irrelevantes os laços afetivos nela formados, desde que cada pessoa cumprisse o seu respectivo papel: homem e chefe da casa, mãe e esposa, filhos.

    Sob este ponto de vista, não seria possível admitir a existência de direitos dos filhos frente a seus pais, a quem lhes deviam respeito, obediência e consideração9. O exercício do pátrio poder10 era um direito dos pais e importava uma relação de subordinação em que se pressupunha que as determinações dos pais seria benéfica aos filhos pela supremacia daqueles. Os filhos eram entendidos como propriedades dos pais a quem deviam obediência e, uma vez que atingissem a vida adulta, deveriam contribuir para uma vida digna de seus pais na velhice.

    Por certo a relação parental era eminentemente econômica. Uma prole numerosa constituiria uma tríplice garantia: mão-de-obra para prosseguir na empresa familiar, meio de transferência e manutenção da propriedade em uma mesma família e garantia dos pais de cuidados na velhice.

    A família moderna possui características bem distintas dos modelos anteriores: o número de seus componentes é, em regra, reduzido, especialmente em razão do incremento dos métodos contraceptivos e da necessidade econômica; impera a igualdade entre os cônjuges; as relações parentais passar a ser analisadas sob a ótica do interesse da criança e do adolescente, e não mais sob o jugo de autoridade paterna11.

    A estrutura familiar atual é marcada pelo afeto entre os seus membros, a ausência de estrutura formal rígida (isto é, desnecessário que a família seja composta por um casal e seus filhos, podendo ser reconhecida entidade familiar entre irmãos ou outra comunidade de parentes) e pela maior participação das crianças e adolescentes no âmbito familiar, inclusive com possibilidade de influir e determinar as decisões familiares12.

    O modelo familiar contemporâneo é notadamente democrático, como bem destacado por Maria Celina Bodin de Moraes13:

    Em termos sociológicos, a tendência da família contemporânea é tornar-se um grupo cada vez menos organizado, menos hierarquizado e independente de laços consangüíneos, e cada vez mais baseado em sentimentos e em valores compartilhados.

    Na verdade, a partir da década de 60, no mundo ocidental, a família começa a tornar-se mais atraente porque um de seus princípios fundadores passa a ser o respeito, tanto dos maridos co relação às mulheres, quanto dos pais em relação aos filhos - com o reconhecimento destes como pessoas -, alterando significativamente as relações de autoridade antes existentes entre os seus membros. Além disso, uma certa igualdade de tratamento entre os cônjuges, garantida por lei, passou a caracterizar o grupo familiar, também contribuindo para a relevante mudança que permitiu a ampliação, tempos depois, dos espaços de autonomia, crescimento individual e auto-afirmação de cada membro dentro do grupo.

    (...)

    Para Anthony Giddens"a família está se tornando democratizada, conforme modos que acompanham processos de democracia pública; e tal democratização sugere que a vida familiar poderia combinar escolha individual e solidariedade social". Segundo Giddens, um dos principais teóricos desta concepção, a democratização no contexto da família implica igualdade, respeito mútuo, autonomia, tomada de decisão através da comunicação, resguardo da violência e integração social."

    Esta mudança de perspectiva atingiu todos os institutos de Direito de Família, inclusive a autoridade parental, que deixa de ser compreendida como uma potestá dos pais sobre os filhos, para ser definida como um dever e direito constitucionalmente reconhecido aos pais em favor dos filhos, ou seja, como situação subjetiva complexa, mas que é necessariamente direcionada pelo interesse do incapaz.

    Como destacado por Gustavo Tepedino14,"o estudo da disciplina da autoridade parental no Brasil revela, de pronto, duas peculiaridades essenciais. Em primeiro lugar, trata-se de situação jurídica subjetiva existencial, caracterizada pela atribuição aos pais do poder de interferência na esfera jurídica dos filhos menores, no interesse destes últimos e não dos titulares do chamado poder jurídico".

    A ascensão de um paradigma diferenciado sobre a autoridade parental funda-se não apenas na nova modelagem da entidade familiar, como também na inclusão da tutela diferenciada e prioritária que a Constituição da República de 1988 assegurou às crianças, adolescentes e jovens.

    O art. 227 da Constituição da República (com redação alterada pela Emenda Constitucional n. 65, de 2010) estabelece que é dever da sociedade, do Estado e da família assegurar-lhes"com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão".

    Ao inserir expressamente em suas disposições a doutrina da proteção integral da criança, a Constituição da República ratifica a democratização do modelo familiar e faz ascender em importância a questão das crianças e dos adolescentes, impondo que as decisões parentais (e sociais e estatais) sejam necessariamente pautadas pelo seu melhor interesse.

    É importante perceber que a prática de atos que interfiram na esfera subjetiva de crianças e adolescentes tem uma finalidade a ser atendida: o seu melhor interesse.

    A cláusula aberta da "proteção do melhor interesse" só pode ser lida validamente à luz da dignidade da pessoa humana, a qual irá determinar que o exercício da autoridade parental valorize a construção da subjetividade de seus filhos, sua integridade psicofísica e aspectos ligados à igualdade e à sua inserção na comunidade.

    Para Roberta Tupinambá15:

    Ao atentar para a dignidade da pessoa humana no contexto do princípio do melhor interesse da criança e da proteção integral, trata-se, em verdade, de atenção voltada a uma dimensão muito específica do princípio da dignidade da pessoa humana, qual seja a do cuidado.

    Destarte, no que concerne ao teor do princípio do melhor interesse da criança, nota-se outra dose de cuidado, veja-se: o conceito de "melhor interesse", além de ser aberto e subjetivo, adere à relatividade, daí porque o entendimento do princípio do melhor interesse da criança poder sofrer variações de diversas naturezas - culturais, sociais, axiológicas etc.

    Ato contínuo, ao permitir que hajam as referidas variações, permite o legislador que a definição do mérito do princípio do melhor interesse da criança e da proteção integral seja definido no caso concreto, em uma situação real.

    Assim, atende-se cabalmente ao princípio jurídico do cuidado, ao passo que, por não haver um entendimento preconcebido do que seja o melhor para a criança ou adolescente, pode-se verificar qual a decisão mais justa no caso concreto.

    E não poderia ser diferente, afinal, tem-se que, em linhas gerais, o que a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança proclama é a prioridade absoluta e imediata da infância e da juventude, conduzindo a criança e o adolescente a uma consideração especial, sendo seus direitos fundamentais universalmente salvaguardados. Não obstante, o teor da Convenção deixa cristalina a imposição aos pais e responsáveis do dever de dirigir às crianças cuidados especiais, corolário do princípio do melhor interesse da criança.

    Por tais premissas, não há como excluir a priori o exercício de posições subjetivas ou faculdades por parte dos menores de idade apenas por tal condição. Se a constituição de uma vida autônoma faz parte da construção da subjetividade da pessoa, não pode a incapacidade legal e a subordinação dos menores à autoridade parental servir como óbice ao exercício deste direito.

    Tampouco há como justificar que a exclusão de toda privacidade atenda o melhor interesse da criança e do adolescente.

    Além disso, conforme acima demonstrado, o direito à privacidade tem estatura constitucional, e por essa razão não pode ser simplesmente eliminado, pois qualquer ato neste sentido é inconstitucional.

    Por outro lado, a Constituição impõe aos pais o dever de cuidado em relação a seus filhos, cuidado esse que é inerente à autoridade parental, como decorrência do princípio da parentalidade responsável. Como afirma Guilherme Calmon16:

    A parentalidade responsável não diz respeito apenas à decisão de se tornar pai ou mãe, uma vez que gera responsabilidade para toda uma vida, que vai muito além dos limites temporais impostos à autoridade parental. Assim, a consciência do exercício da parentalidade abrange muito mais do que o aspecto voluntário de procriar, mas especialmente os aspectos posteriores ao nascimento do filho, inerentes à responsabilidade parental, nas fases mais relevantes da formação e desenvolvimento da personalidade que são a infância e a adolescência.

    Cabe aos pais assegurar o pleno desenvolvimento de seus filhos e a sua dignidade, permitindo que seus filhos pratiquem os atos que demonstrem ter discernimento para tanto, e impedindo outros que não se adéqüem ao seu desenvolvimento. É inerente à autoridade parental que os pais assistam, eduquem, criem e forneçam assistência material e moral a seus filhos, de modo que o seu exercício, por lógico, envolve a permissão e a proibição da prática de determinadas condutas e certos direitos, dentre eles, a privacidade.

    Na tensão entre o direito dos filhos e a autoridade parental há que ser buscado um critério de compatibilização das situações jurídicas, que, para além da mera proporcionalidade, afigura-se como a função dos institutos jurídicos envolvidos.

    4. A função da autoridade parental:

    O processo de funcionalização do direito nasceu como resposta à excessiva valorização da propriedade no Direito Civil, promovendo uma ressignificação dos institutos de direitos privado à luz da socialidade e da dignidade da pessoa humana.

    Coube à função um duplo papel: coagir ao máximo aproveitamento dos institutos e a observância da dignidade (função positiva); e, sancionar os atos praticados em inobservância àquela primeira finalidade (função negativa).

    Inicialmente a função foi direcionada às situações patrimoniais, sobre as quais foi erigido o ordenamento civil dominante até o final da década de 1980 e início de 1990. De fato, a prevalência da propriedade como valor jurídico exigia um novo significado a partir da vigência da Constituição da República de 1988 e a ascendência da dignidade da pessoa humana como princípio fundamental do Estado Democrático de Direito brasileiro.

    Ultrapassada essa etapa inicial e necessária no Direito Civil, ampliou-se o processo de funcionalização às situações existenciais, na medida em que "todo instituto jurídico é criado com um determinado fim, com uma determinada função, a qual deve ser observada na sua aplicação, sob pena de desvirtuá-lo"17. Aplicada às situações existenciais, a função determina a promoção da dignidade de seu titular.

    A função da autoridade parental é favorecer o desenvolvimento da personalidade da criança, do jovem e do adolescente. Para tanto, como já mencionado, compete aos pais prover seus filhos de afeto, cuidado, educação, cultura, saúde e assistência moral e material, devendo sempre observar o princípio constitucional do melhor interesse da criança.

    Como destacado por Gustavo Tepedino18:

    A interferência na esfera jurídica dos filhos só encontra justificativa funcional na formação e no desenvolvimento da personalidade dos próprios filhos, não caracterizando posição de vantagem juridicamente tutelada em favor dos pais. A função delineada pela ordem jurídica para a autoridade parental, que justifica o espectro de poderes conferidos aos pais - muitas vezes em detrimento da isonomia na relação com os filhos, e em sacrifício da privacidade e das liberdades individuais dos filhos - só merece tutela se exercida como um múnus privado, um complexo de direitos e deveres visando ao melhor interesse dos filhos, sua emancipação como pessoa, na perspectiva da sua futura independência.

    Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk chega à mesma conclusão, tomando como premissa a correlação entre liberdade e funcionalização19:

    Na relação paterno-filial reside, como se vê, a demonstração mais evidente da impossibilidade de se pensar uma dimensão funcional unitária para a expressão jurídica do fenômeno familiar. Se a função como liberdade (s) permeia também a autoridade parental, não se pode deixar de ter em conta que, como autoridade que é, ela implica uma óbvia restrição imediata à liberdade negativa dos seus destinatários.

    (...)

    A inevitabilidade (e a exigibilidade) da limitação das escolhas exercitáveis pelos filhos menores conforme seu grau de capacidade (como capacidade de exercício, em sentido jurídico) - e, nessa medida, conforme o grau de proteção a que têm direito - insere-se na necessidade de se pensar as funções jurídicas da família em relação às crianças e aos adolescentes como vinculadas também a um desenvolvimento de suas aptidões na conformação dos vínculos sociais de coexistencialidade para além da comunidade familiar.

    A questão é que essa compreensão - que inclusive é constitucionalmente proclamada - de uma família "base da sociedade", que poderia ser pensada em termos comtianos, deve ser levada a efeito, contemporaneamente, diversamente do que se pode supor com fulcro no pensamento do sociólogo e filósofo oitocentista. Deve-se compreendê-la como base de uma sociedade "livre, justa e solidária".

    Sendo uma sociedade livre, a formação dos indivíduos na sujeição familiar para efeito de propiciar a conformação de vínculos sociais deve ser pensada coerentemente com a garantia de espaços de autoconstituição.

    Percebe-se claramente a mudança de conteúdo nas relações familiares contemporâneas e a imperiosidade de que os pais observem o melhor interesse de seus filhos na tomada de decisões sobre a sua vida.

    A falta de tessitura concreta do princípio não constitui justificativa idônea para o seu afastamento. Esclarece Rose Melo Vencelau Meirelles que é a casuística que determinará seu âmbito de ação20:

    Embora seja bom, até mesmo em nível prático, estabelecer critérios para a definição do melhor interesse da criança, a concretude do princípio só será possível diante do fato. Isto porque não se pode criar presunções do tipo "é melhor para a criança viver com o pai/mãe mais rico", pois pode ser que o mais pobre disponha de mais tempo, laço maior de afinidade, etc. Tais critérios, portanto, são aqueles genéricos de definição caso a caso, tais como a situação econômica dos pais, os laços de afetividade, dentre outros. Com a avaliação de tantos critérios, os quais devem já ter uso corrente mesmo sem sistematização, é possível estabelecer um conteúdo ao melhor interesse da criança, sem pender para o subjetivismo.

    É nas situações da vida que o princípio é concretizado. Em se tratando do princípio do melhor interesse da criança, ele traz em si certa tendência para o subjetivismo, uma vez que o julgador tende a pesar pelo juízo pessoal o melhor interesse da criança. Esse é um perigo do qual se deve fugir.

    O desatendimento do melhor interesse da criança e do adolescente configura exercício abusivo da autoridade parental, eis que excedidos seus limites internos, fixados estes de acordo com o seu fundamento axiológico-material.

    O exercício da autoridade parental há que obedecer aos seus limites internos, à sua função, sob pena de ingressar na seara da ilicitude, ainda que categorizada como situação complexa (ou seja, além do mero direito subjetivo), eis que "a teoria [do abuso do direito] aplica-se também a outras prerrogativas individuais, como as liberdades, faculdades, funções ou poderes, visto que todas elas possuem igualmente um fundamento axiológico"21.

    A propósito, embora a teoria do abuso do direito haja sido construída sob premissas patrimoniais, não há como rejeitar a sua aplicação às situações existenciais, eis que a elas também corresponde uma determinada função.

    De fato, enquanto os institutos patrimoniais devem obediência a uma função social e econômica, cabe às situações existenciais a observância com maior rigor (mas não exclusiva) da dignidade da pessoa humana.

    O fundamento para a extensão da teoria do abuso do direito às situações existenciais é a própria Constituição, que em seu art. , inciso III, estabelece como fundamento de nosso Estado Democrático de Direito a dignidade da pessoa humana, e no art. , incisos I e IV, estabelece como objetivo a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, e a promoção do bem de todos.

    No plano infraconstitucional, concordamos com Rafael da Silva Rocha que afasta o art. 187 do Código Civil como fonte de legitimação do abuso do direito nas situações extrapatrimoniais. Isso porque a limitação pelos fins econômico-sociais, a boa-fé e os bons costumes são categorias inadequadas às situações existenciais, que buscam sua legitimidade diretamente da Constituição.

    A observância da finalidade econômico-social de um direito é afastada pela incompatibilidade ontológica com a situação extrapatrimonial, a qual prevalece sobre aquela. Por sua vez, os bons costumes representam categoria inexata e excessivamente fluida, vinculada eminentemente a uma moral por demais subjetiva para autorizar o seu uso em matéria tão sensível.

    Em relação a boa-fé objetiva, poder-se-ia pensar, a priori , na sua utilização. Contudo, a vertente da confiança que lhe é inerente não permite que seja acomodada às situações existenciais, na qual a pessoa não pode ser despida de sua possibilidade de escolha (não há como limitar o âmbito de liberdade da pessoa e seu direito a modificar sua conduta), sob pena de corresponder a um atentado a integridade psicofísica (e, assim, a dignidade).

    De acordo com Anderson Schreiber22:

    Nas relações existenciais de família, também se deve admitir a aplicação do princípio da boa-fé objetiva, como mecanismo de controle dos atos de autonomia privada, onde outros instrumentos, mais específicos, já não exercerem esta função. Imperativo faz-se, todavia, atentar, sobretudo em tais relações, para a incidência direta dos princípios constitucionais que, sendo hierarquicamente superiores à tutela da confiança e à boa-fé objetiva, quase sempre antecipam para os conflitos instaurados neste campo uma certa solução. Tal solução pode não apenas se mostrar contrária à solução recomendada pela boa-fé objetiva, onde sua base negocial tiver decisiva influência, mas se revela, mesmo em caso de convergência, fundamentada em norma mais elevada sob o ponto de vista da hierarquia do sistema jurídico vigente, característica importantíssima na sua conservação.

    Discorrendo sobre o abuso de direito em situações existenciais, Rafael da Silva Rocha propõe como fundamento o art. 188, I, do Código Civil, fulcrado no exercício irregular de direito23:

    Partindo dessa premissa, sustenta-se que o princípio da proporcionalidade individual e social, com seus três elementos bem definidos (adequação necessidade e proporcionalidade stricto sensu ), seria a justa medida entre a liberdade individual e a solidariedade social, estabelecendo, casuisticamente, os limites para o exercício de situações existenciais pelo titular no interesse de terceiros, sendo antijurídico e, portanto, abusivo, o exercício que não seja proporcional. Em razão da necessidade de convivência, os direitos devem ser exercidos de modo regular, moderado, proporcional a satisfação do interesse daquele que o exerce. É o que estabelece o art. 188, I, do Código Civil, proibindo, a contrario sensu , o exercício irregular.

    Realmente a interpretação a contrario sensu do inciso I do art. 188 do Código Civil permite alocar o descumprimento da função (exercício regular do direito) como base do abuso do direito nas situações existenciais, ratificando a afirmação já feita de que, descumprido o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, praticam os pais ato ilícito.

    5. Conclusão:

    A visualização da criança e do adolescente como pessoas inabilitadas a possuírem uma vida autônoma fez com que o Direito as enxergasse por longos anos como objeto de direito, sujeitandoas às autoridades do Estado e dos pais.

    O olhar sobre a condição do menor na sociedade alterou-se com o tempo. De objeto do direito, entendeu-se que a peculiar condição da criança e do adolescente decorre de seu progressivo desenvolvimento, razão pela qual a tutela garantida pelo ordenamento a estas pessoas deveria favorecer se crescimento e aprimoramento como ser no mundo.

    A inversão desta perspectiva promoveu resultados importantes. No plano internacional, a Convenção de Direitos da Criança e do Adolescente, por exemplo; no plano jurídico nacional, a edição do Estatuto da Criança e do Adolescente.

    Apesar deste paradigma diferenciado, e de ser assente que a criança e o adolescente são destinatários de tutela jurídica diferenciada, pouco se desenvolve acerca do exercício de direitos fundamentais. Talvez, porque ainda não haja sido compreendida a totalidade do significado desta especial proteção.

    O que pretendemos demonstrar é a compatibilidade (e a necessidade) do exercício do direito à privacidade por crianças e adolescentes como instrumento de desenvolvimento de sua personalidade. Esta liberdade não é absoluta e irrestrita, mas encontra limites na autoridade parental; esta, por sua vez, encontra limites na função de seu encargo.

    Filhos têm direito à privacidade para se autodeterminar em um mundo em que as trocas de e acessos às informações pessoais avançam em alta velocidade. Cabe aos pais avaliar o momento adequado ao exercício deste direito e a sua extensão, sem jamais poder excluí-lo.

    6. Referências:

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    ______________________________

    1 BRANDEIS, Louis D. WARREN, Samuel D. The right to privacy. Harvard Law Review, vol. 4, n. 5 (Dec. 15, 1890), pp. 193-220. Disponível em http://www.jstor.org/stable/1321160. Acesso em 13 de agosto de 2011.

    2 RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade de vigilância: a privacidade hoje. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 15.

    3 Op cit., pp. 23-24.

    4 Disponível em http://www.unicef.org/brazil/pt/resources_10120.htm. Acesso em 13.08.2011.

    5 "Em relação ao âmbito de proteção de determinado direito individual, faz-se mister que se identifique não só o objeto da proteção (O que é efetivamente protegida?), mas também contra que tipo de agressão ou restrição se outorga essa proteção. Não integraria o âmbito de proteção qualquer assertiva relacionada com a possibilidade de limitação ou restrição a determinado direito. Isso significa que o âmbito de proteção não se confunde com proteção efetiva e definitiva, garantindo-se a possibilidade de que determinada situação tenha a sua legitimidade aferida em face de dado parâmetro constitucional." (BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. COELHO, Inocência Mártires. MENDES, Gilmar Ferreira. Op. Cit.,, p. 295)

    6 BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional contemporâneo. 1ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2009, p. 260.

    7 No sentido oposto: "Com base em relatos de contemporâneos e obras atuais, é possível afirmar que a formação de um núcleo familiar estável, duradouro, não foi exatamente a regra no universo colonial, especialmente no primeiro século. Do século XVII em diante, as coisas mudaram um pouco, com a chegada à América de senhoritas européias, que encontraram aqui um enorme contingente masculino à sua espera. Sobre a falta de mulheres brancas aptas ao casamento nas novas terras, nos dá bom testemunho o padre Manoel da Nóbrega, em carta enviada à Portugal ao padre Mestre Simão, de 1549: (...) E se faltavam fêmeas de pelé branca, havia enorme disponibilidade de índias e escravas. Contudo, o ideal do colonizador, especialmente dos que participavam dos grupos dirigentes, era o casamento entre iguais, sem mistura de cores. O matrimônio entre brancos e mulheres de grupos diferentes não era bem visto socialmente. E existiram processos judiciais em que se tentou impedir casamentos por conta de preconceitos de classe e de cor (...). Diriam alguns que esta" estranha aversão ao casamento "era resultante também da opção de muitos que, chegados à colônia, sozinhos e seduzidos pela fartura de mulheres com as quais poderiam amasiar-se sem maiores compromissos, preferiram permanecer solteiros. Segundo Gilberto Freyre,"os homens não gostavam de casar para toda a vida, mas de unir-se ou de amasiar-se; as leis portuguesas e brasileiras, facilitando o perfilamento dos filhos ilegítimos, só faziam favorecer esta tendência para o concubinato e para as ligações efêmeras". O termo concubinato surgiu acima num sentido um tanto depreciativo, como uma relação sem compromissos, entretanto, há também outro sentido possível. Concubinato pode significar uma união consensual, livre, por vezes tão estável quanto o próprio matrimônio; uma forma de união socialmente reconhecida, que implica uma série de direitos e deveres mais ou menos determinados; um legítimo casameno aos olhos da comunidade. E esta foi uma prática comum no período colonial. As grandes distâncias que separavam a maioria dos fiéis das paróquias, o pequeno número de dioceses comparado à imensidão do território brasileiro, o alto custo imposto aos noivos pela Igreja e os preconceitos de cor e aqueles relativos à posição social dos indivíduos são alguns dos motivos que afastavam o grosso da população das formalidades eclesiásticas. Sendo assim," é preciso reconhecer que muitas das situações legalmente irregulares se explicam por outros motivos que a simples indisciplina sexual ". (SILVA, Thiago Luís Magalhães. Família, cotidiano e vida privada. Disponível em História da vida privada: família. Acesso em 21 de março de 2011)

    8 LÔBO, Pauo Luiz Netto. A repersonalização das relações de família. Jus Navegandi. Teresina, ano 9, n. 307, 10 maio 2004. Disponível em: . Acesso em 21 de março de 2011.

    9 O inciso VII do art. 384 do Código Civil de 1916 elencava como um dos direitos decorrentes do pátrio poder o direito dos pais de"exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição".

    10 Posto que ultrapassada, a expressão é aqui utilizada propositalmente.

    11"Ao colocar em xeque a estruturação familiar tradicional, a contemporaneidade (em meio às inúmeras novidades tecnológicas, científicas e culturais) permitiu entender a família como uma organização subjetiva fundamental para a construção individual da felicidade. E, nesse passo, forçoso é reconhecer que além da família tradicional, fundada no casamento, outros arranjos familiares cumprem a função que a sociedade contemporânea destinou à família: entidade de transmissão da cultura e formação da pessoa humana digna. Nesse novo ambiente, averbe-se que é necessário compreender a família como sistema democrático, substituindo a feição centralizadora e patriarcal por um espaço aberto ao diálogo entre os seus membros, onde é almejada a confiança recíproca. Forte em GIDDENS, o que se propugna é uma verdadeira democracia das emoções da vida cotidiana: "uma democracia das emoções é exatamente tão importante quanto a democracia pública para o aperfeiçoamento da qualidade de nossas vidas"". (FARIAS, Cristiano Chaves. A família da pós-modernidade: em busca da dignidade perdida. Persona: Revista Electrónica de Derechos Existenciales, n. 9, sept./2002. Disponível em www.revistapersona.com.ar/Persona09/9farias.htm. Acesso em 21 de março de 2011).

    12 Veja-se, por exemplo, o art. 28, § 2º, do Estatuto da Criança e do Adolescente, que condiciona a colocação em família substituta ao consentimento do maior de 12 anos.

    13 MORAES, Maria Celina Bodin de. A família democrática. In: Na medida da pessoa humana. São Paulo: Renovar, 2010, pp. 212-213.

    14 TEPEDINO, Gustavo. A disciplina da guarda e a autoridade parental na ordem civil-constitucional. Revista Trimestral de Direito Civil - RTDC, vol. 17, ano 5, jan./mar. 2004, Editora Padma, p. 39

    15 TUPINAMBÁ, Roberta. O cuidado como princípio jurídico nas relações familiares. IN: PEREIRA, Tânia da Silva; OLIVEIRA, Guilherme (Coord.) O cuidado como valor jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 2008, pp. 371-372.

    16 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A nova filiação: o biodireito e as relações parentais: o estabelecimento da parentalidade filiação e os efeitos jurídicos da reprodução assistida heteróloga. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 455.

    17 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. GUERRA, Leandro dos Santos. Função social da família. IN: Função social no direito civil. São Paulo: Editora Atlas, 2008, p. 133.

    18 TEPEDINO, Gustavo. Op. Cit., p. 41.

    19 RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Institutos fundamentais do direito civil e liberdade (s): repensando a dimensão funcional do contrato, da propriedade e da família. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2011, pp. 323-324.

    20 MEIRELLES, Rose Melo Vencelau. O princípio do melhor interesse da criança. IN: MORAES, Maria Celina Bodin de. Princípios do Direito Civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, pp. 491-492.

    21 CARPENA, Heloísa. O abuso do direito no Código de 2002: relativização de direitos na ótica civil-constitucional. IN: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). A parte geral do novo Código Civil: estudos na perspectiva civil-constitucional. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 380.

    22 SCHREIBER, Anderson. O princípio da boa-fé objetiva no direito de família. IN: MORAES, Maria Celina Bodin de. Princípios do Direito Civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 457.

    23 ROCHA, Rafael da Silva. Abuso do direito nas relações existenciais: uma adaptação conceitual. IN: FACHIN, Luiz Edson. TEPEDINO, Gustavo (Org.). Pensamento Crítico do Direito Civil brasileiro. Curitiba: Juruá Editora, 2011, p. 189.

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    fds continuar lendo

    Invasão de privacidade do filho (a) que tem um quarto onde os pais pagam o seu espaço e o sustentam??? Se os pais sentirem algo de estranho no comportamento dos filhos, sem dúvida nenhuma deve procurar saber de qqr forma o que está acontecendo. Eu invadia o computador, gavetas, exigia o telefone de todos os amigos e queria saber onde e com quem estava. E se eu não os encontrasse eu ligava pra todo mundo pra procura-los. Se o governo se meter a gente manda a conta, que era bem cara, pra vcs pagarem. Meus filhos hj são adultos firmados, trabalhadores, de ótimo caráter e tem senso de família.
    Durma-sw com um barulho desses! Interferir na educação dos pais!
    Violação da privacidade da criança, são os pais que não sabem onde seus filhos estão e prostituem seus filhos e o conselho tutelar nada faz. Teoria é lindo, mas vai criar de verdade. continuar lendo

    Parabéns!!! continuar lendo