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18 de Maio de 2024

Leia a íntegra da decisão que autorizou o primeiro casamento homossexual no Brasil

PODER JUDICIÁRIO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Comarca de Jacareí/SP

2ª Vara da Família e das Sucessões

Corregedoria Permanente do Registro Civil das Pessoas Naturais e de Interdições e Tutelas

Protocolo nº 1209/2011 (Conversão de União Estável em Casamento).

Vistos.

LUIZ ANDRÉ DE REZENDE MORESI e JOSÉ SÉRGIO SANTOS DE SOUSA , ambos do sexo masculino , demais qualificações nos autos, protocolaram pedido de conversão de união estável em casamento .

Instruíram o pedido com escritura pública lavrada em 17/05/2011, perante o 1º Tabelião de Notas e de Protestos de Letras e Títulos de Jacareí/SP (livro nº.705, fls. 017), onde declararam viver em união estável 8 (oito) anos .

Foi publicado edital e cumpridas todas as formalidades legas para habilitação a

casamento, não havendo impugnações.

O pedido foi instruído com declaração de duas testemunhas, no sentido de que os requerentes “mantém convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de famí1ia” .

O Ministério Público ofertou parecer favorável ao pedido.

É o relatório do necessário. Fundamento e decido.

Preliminarmente, observa-se que, conforme pedido expresso dos autores, os mesmos pretendem a conversão de alegada união estável em casamento , como permite e prevê o art. 226, § 3º, parte final, da Constituição Federal, e o art. 1.726 do Código Civil .

Regulamentando tais dispositivos constitucionais e legais, a Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo , em suas Normas de Serviço (Tomo II, Capítulo XVII, Seção V, Subseção IV, art. 135) , assim disciplinou o procedimento de conversão da união estável em casamento:

“87. A conversão da união estável em casamento deverá ser requerida pelos conviventes perante o Oficial do Registro Civil das Pessoas Naturais de seu domicílio. (Nota 2: Provo CGJ 25/2005).

87.1. Recebido o requerimento, será iniciado o processo de habilitação previsto nos itens 52 a 74 deste capítulo, devendo constar dos editais que se trata de conversão de união estável em casamento. (Nota 3: Provo CGJ 25/2005).

87.2. Decorrido o prazo legal do edital, os autos serão encaminhados ao Juiz Corregedor Permanente , salvo se este houver editado portaria nos moldes previstos no item 66 supra. (Nota 4: Provs. CGJ 25/2005 e 14/2006).

87.3. Estando em termos o pedido, será lavrado o assento da conversão da união estável em casamento, independentemente de qualquer solenidade, prescindindo o ato da celebração do matrimônio . (Nota 5: Provs. CGJ 25/2005 e 14/2006).

87.4. O assento da conversão da união estável em casamento será lavrado no Livro B, exarando-se o determinado no item 81 deste Capítulo, sem a indicação da data da celebração, do nome e assinatura do presidente do ato, dos conviventes e das testemunhas, cujos espaços próprios deverão ser inutilizados, anotando-se no respectivo termo que se trata de conversão de união estável em casamento. (Nota 5: Provo CGJ 25/2005).

BLOCO DE ATUALIZAÇÃO Nº 28 - CAP. XVII - 31

87.5. A conversão da união estável dependerá da superação dos impedimentos legais para o casamento, sujeitando-se à adoção do regime matrimonial de bens, na forma e segundo os preceitos da lei civil . (Nota 1: Provo CGJ 25/2005).

87.6. Não constará do assento de casamento convertido a partir da união estável, em nenhuma hipótese, a data do início, período ou duração desta. (Nota 2: Provo CGJ 25/2005)”.

Resumindo-se, verifica-se que o casamento civil tradicional difere do casamento por conversão de união estável apenas pela substituição do ato solene da celebração , presidido pelo ''juiz de paz", pela homologação , realizada pelo Juiz de Direito responsável pela Corregedoria Permanente do Registro Civil das Pessoas Naturais da comarca.

No mérito, cumpridas todas as formalidades legais, a questão que se coloca para análise é a possibilidade ou não de casamento civil entre pessoas do mesmo sexo , o que se passa a apreciar.

O maior e mais repetido princípio da Constituição da Republica Federativa do Brasil é o da igualdade .

A mesma constituição elegeu a "dignidade da pessoa humana"como um de seus"fundamentos"(art. 1º, inciso 111), e declarou que o Brasil tem como "objetivos fundamentais"a construção de "uma sociedade livre, ,justa e solidária ", bem como ''promover o bem de todos, SEM PRECONCEITOS de origem, raça, SEXO , cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação " (art. 3º, incisos I e IV).

Também determina a Constituição Federal que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza " e que "homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição" (art. 5º, inciso I).

Mais à frente, no Título "Da Ordem Social", a Lei Maior afirma que "a famí1ia, base da sociedade, tem especial proteção do Estado" (art. 226, caput ).

Sobre o casamento, a Constituição Federal dispõe que o mesmo "é civil e gratuita a celebração" (art. 226, § 1º), acrescentando que "o casamento religioso tem efeito civil , nos termos da lei" (art. 226, § 1º), e que o casamento ''pode ser dissolvido pelo divórcio "(art. 226, § 6º, com redação dada pela Emenda Constitucional nO66, de 13/07/2010).

A Constituição Federal também declara que ''para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável (...) como entidade familiar, DEVENDO A LEI FACILITAR SUA CONVERSÃO EM CASAMENTO ", e que "entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes "(art. 226, §§ 3º e 4º).

Em harmonia com o princípio da igualdade , nossa Lei Maior enfatiza que "os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher"(art. 226, § 5º).

Aqui cabe abrir parêntesis para alertar que tal dispositivo não necessariamente declara que casamento existe apenas entre homem e mulher , até porque "sociedade conjugal” não é "casamento", sendo certo que a primeira sempre pôde ser dissolvida pela "separação"(de jato, judicial e mais recentemente também extrajudicial) , e o segundo somente é dissolvido pelo "divórcio".

Contudo, aparentemente rompendo todo esse contexto de ênfase no princípio da igualdade , a Constituição da Republica Federativa do Brasil, ao mencionar a união estável em seu art. 226, § 3º, assim se pronunciou: " é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar "(art. 226,§§ 3º).

Mais de duas décadas passadas desde 05/10/1988, quando foi promulgada a Constituição da Republica Federativa do Brasil, e já se ingressando na segunda década do Século XXI, é público e notório que milhares de pessoas do mesmo sexo (homens e homens; mulheres e mulheres), compartilham a vida juntos como se casados fossem .

A ausência de respaldo jurídico a tal realidade social causou inúmeros prejuízos e injustiças, desde o não reconhecimento do direito à sucessão, passando pela ausência da presunção legal de esforço comum no patrimônio constituído, até a ausência de direitos sociais, como a pensão previdenciária por morte.

Nesse contexto, tramitava perante o Supremo Tribunal Federal a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF nº. 178 (conhecida como a Ação Direta de Inconstitucionalidade - ADI nº. 4277 ), ajuizada pela Procuradoria-Geral da República , objetivando a declaração de reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar . Pedia-se, também, que os mesmos direitos e deveres dos companheiros nas uniões estáveis fossem estendidos aos companheiros nas uniões entre pessoas do mesmo sexo.

Também estava em trâmite a ADPF nº. 132 , onde o Estado do Rio de Janeiro alegava que o não reconhecimento da união homoafetiva contrariava preceitos fundamentais como igualdade, liberdade (da qual decorre a autonomia da vontade) e o princípio da dignidade da pessoa humana, todos da Constituição Federal, e pediu que o STF aplicasse o regime jurídico das uniões estáveis , previsto no artigo 1.723 do Código Civil, às uniões homoafetivas de funcionários públicos civis do Rio de Janeiro.

Foi nesse contexto que no dia 05 de maio de 2011 , o Supremo Tribunal Federal , no julgamento de tais ações, tendo como relator o Exmo. Ministro Ayres Britto, reconheceu a união estável para casais do mesmo sexo, dando interpretação conforme a Constituição Federal, para excluir qualquer significado do artigo 1.723 do Código Civil que impeça o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar .

Na ocasião, o Exmo. Ministro Ayres Britto foi seguido pelos Exmos. Ministros Luiz Fux, Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa, Gilmar Mendes, Março Aurélio, Celso de Mello e Cezar Peluso, bem como Exma Ministras Cármen Lúcia Antunes Rocha e Ellen Gracie - decorrendo votação unânime dos presentes.

Tal julgamento, nos termos do art. 102, § 2º, da Constituição Federal , possui "eficácia contra todos e efeito vinculante , relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal” .

No caso concreto, aplica-se a conhecida fórmula jurídica romana, segundo a qual "onde há a mesma razão. aplica-se o mesmo direito " ( "ubi eadem ratio, ibi eadem jus") . Desta forma, os fundamentos de tal julgamento, ainda que sem o dito efeito vinculante, certamente são aplicáveis ao instituto de direito civil denominado casamento , inclusive ao mencionado art. 226, § 5º, da Constituição Federal - o que apenas não foi declarado no mencionado precedente histórico do STF, provavelmente porque não era objeto dos pedidos das ações em análise.

Os prováveis entraves a tal entendimento podem advir de discriminação e/ou de convicções religiosas.

Mas o Estado Brasileiro, do qual o Judiciário é um dos Poderes, repudia constitucionalmente a discriminação e é laico , ou seja, não vinculado a qualquer religião ou organização religiosa.

É bom e necessário que assim seja, pois alguns dogmas ou orientações religiosas muitas vezes se chocam com princípios e garantias da Constituição da Republica Federativa do Brasil.

A discriminação (ou preconceito) contra homossexuais decorre normalmente de equívoco sobre a origem "psíquica" do homossexualismo, e de dogmas ou orientações religiosas .

O equívoco de origem "psíquica" é a crença que o homossexualismo e suas variantes (transexualismo etc.) ou a união homoafetiva constituem simples opção sexual .

Tal premissa parece equivocada, porque o fenômeno pelo qual um homem ou uma mulher se sente atraído (a) por pessoa do mesmo sexo, a ponto às vezes de repudiar contato íntimo com pessoa do sexo oposto, não se mostra como uma opção . Tudo indica tratar-se de uma característica individual de determinados seres humanos , tão independente da vontade quanto a cor do cabelo, da pelé, o caráter, as aptidões etc.

De fato, se no mundo ainda vige forte preconceito contra tais pessoas, e se as mesmas têm de passar por sofrimentos internos, familiares e sociais para se reconhecerem para elas próprias e publicamente com homossexuais - às vezes pagando com a própria vida -, parece que, se pudessem escolher , optariam pela conduta socialmente mais aceita e tida como “normal”.

O dogma ou orientação religiosa que de forma mais marcante se opõe ao casamento entre pessoas do mesmo sexo é a colocação da relação sexual procriadora como principal elemento ou requisito essencial do casamento .

Ocorre que o motivo maior de uma união humana é - ou deveria ser �- o Amor , até porque este é pregado pela maioria das religiões, principalmente as cristãs, como o valor e a virtude máxima e fundamental .

Fosse de outra forma, muitas religiões não poderiam aprovar casamentos entre pessoas de sexos opostos que não podem ter filhos. E se assim agem, parecem afrontar a Lei Cristã do Amor, e prejudicam a formação da entidade familiar ou famí1ia , que é a base da sociedade .

Por outro enfoque, muitos se preocupam com o potencial envolvimento de crianças ou adolescentes na entidade familiar formada por pessoas do mesmo sexo. Mas, se esquecem que a falta de planejamento familiar, da qual decorre a geração de crianças sem condições mínimas de sustento e educação, bem como atos abomináveis, como, por exemplo, a remessa de recém nascidos em latas de lixo ou o assassinato dos próprios filhos, são diariamente protagonizados por "casais" de sexos opostos ditos "normais" e/ou por pessoas heterossexuais.

O Brasil, entre outras conhecidas mazelas, é palco da falência da segurança pública, das fronteiras sem controle, da disseminação descontrolada das drogas, da endêmica corrupção, e possui a maior carga tributária, a pior distribuição dos tributos arrecadados e o trânsito que mais mata do planeta Terra.

Assim, pode-se afirmar que no Brasil há situações de fato e de direito muito mais graves para se preocupar, que com a vida de dois seres humanos desejosos de paz e felicidade ao seu modo, sem infringir direitos de ninguém.

Finalmente, cabe anotar que no último dia 17 de junho de 2011 , o Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou uma resolução histórica destinada a promover a igualdade dos seres humanos, sem distinção de orientação sexual. A resolução, que teve aprovação do Brasil , embora sem ações afirmativas, dispõe que "todos os seres humanos nascem livres e iguais no que diz respeito a sua dignidade e cada um pode se beneficiar do conjunto de direitos e liberdades sem nenhuma distinção" .

Por todo o exposto, HOMOLOGO a disposição de vontades declarada pelos requerentes do presente procedimento, para CONVERTER em CASAMENTO , pelo regime escolhido da comunhão parcial de bens , a união estável dos mesmos - os quais, por força deste casamento, passam a se chamar respectivamente "LUIZ ANDRÉ REZENDE SOUSA MORESI" e "JOSÉ SÉRGIO SOUSA MORESI".

Tratando-se esta sentença de ato judicial que substitui a celebração, a mesma tem efeitos imediatos. Assim, lavre-se o registro de casamento e providencie-se o necessário às averbações nos registros dos nascimentos das partes.

No mais, nada sendo requerido em 30 (trinta) dias, arquivem-se os autos.

P.R.I. Ciência ao Ministério Público.

Jacareí/SP, 27 de junho de 2011.

Fernando Henrique Pinto

Juiz de Direito

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