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10 de Maio de 2024

Artigo - Mitos sobre a gravidez de substituição - Por Diana Poppe

A infertilidade é uma realidade e ao longo dos séculos ela foi "explicada" ou "justificada" das mais diversas formas e de acordo com as mais criativas "teorias". Bruxaria - Maldição - Castigo - Culpa - foram verdades por alguns séculos. Muitas mulheres se submeteram aos mais inimagináveis rituais, bebendo sangue de outros animais, ou mesmo a urina deles, banhando-se em ervas, tomando choques elétricos, nada jamais foi considerado demais por uma mulher quando o resultado de seu sacrifício fosse ter seu próprio filho.

Apenas no século XIX, a medicina desvendou todos os mistérios da concepção e atribuiu um nível essencialmente científico à infertilidade.

Mesmo assim, para a mulher, gerar um filho, é a condição mais básica e instintiva de sua existência. E quando se fala de sentimentos básicos e instintivos a medicina muitas vezes é desmerecida para dar lugar a rezas, crenças e busca de explicações das mais diversas e irracionais.

Apenas um fato é incontestável: Nada vai cessar a busca da mulher pela maternidade. Nenhum valor vai ser caro para viabilizar esse acontecimento. Nenhuma explicação racional vai ser capaz de interromper a jornada ao encontro com o filho.

Assim, todo mundo sabe que na prática muitas barrigas são e serão alugadas através de "contratos" ou "acertos" que, sem qualquer validade, só geram riscos e inseguranças às partes, principalmente à criança que vai nascer. Através de seu silêncio a lei não proíbe e ao não proibir, tudo pode acontecer e tudo, realmente, vem acontecendo.

Fingir que essa prática não acontece não é solução para esse problema milenar. E esse estudo pretende, justamente, apresentar uma solução.

Cenário Específico

Falo, exclusivamente, de um casal heterossexual cuja mulher não pode gerar um filho por problemas de saúde comprovados, apesar de ter óvulos passíveis de serem fecundados por seu parceiro.

A Resolução do Conselho Federal de Medicina

Sobre esse tema ainda carente de Lei, a única regulamentação existente vem do Conselho Federal de Medicina que através da Resolução CFM 1.957/2010, diz o seguinte:

"VII – SOBRE A GESTAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO (DOAÇÃO TEMPORÁRIA DE ÚTERO)

As clínicas, centros ou serviços de reprodução humana podem usar técnicas de RA para criarem a situação identificada como gestação de substituição, desde que exista um problema médico que impeça ou contraindique a gestação na doadora genética.

1 - As doadoras temporárias do útero devem pertencer à família da doadora genética, num parentesco até o segundo grau, sendo os demais casos sujeitos à autorização do Conselho Regional de Medicina.

2 - A doação temporária do útero não poderá ter caráter lucrativo ou comercial.”

Os mitos atrelados à possibilidade de se remunerar a gestante

No cenário específico tratado neste estudo, se a mulher não tem parente até o segundo grau, a gravidez de substituição não lhe é uma opção viável.

É evidente, entretanto, que se a remuneração fosse permitida, o leque se abriria. E por que não remunerar?

Gerar um filho. Nove meses de gestação. A gestante é submetida a um pré natal no qual, com os recursos técnicos de hoje, realiza cada vez mais exames, muitos deles invasivos. Precisa ter uma alimentação e hábitos saudáveis. A violenta alteração hormonal no corpo da gestante pode provocar as mais variadas sensações, entre elas, as mais comuns, enjôos, ganho de peso, tonteiras, inchaços, além de não ser incomum problemas de pressão alta e diabetes gestacional, que podem, inclusive, pôr em risco a vida da gestante e do próprio feto. Enfim, definitivamente, é uma tarefa árdua.

Quando o filho que se espera é da gestante, todos esses possíveis desconfortos são relativizados porque o resultado – ter um filho – supera qualquer dissabor ou dificuldade.

Porém, passar por isso tudo por uma criança que não é sua, sem qualquer gratificação... Quem iria se habilitar?

Nesse caso, uma gratificação razoável que motive a gestante deve ser considerada.

E por que isso é vedado? Basicamente porque:

1) Se teme a criação de uma indústria global da “barriga de aluguel”;

2) Se teme que a gestante ao firmar o contrato, ainda não estando grávida, não tenha condição psicológica de obrigar-se a entregar o bebê que gerou porque é durante a gravidez que podem ser criados vínculos afetivos entre gestante e feto;

3) Se teme a coisificação da criança;

4) Se teme a mercantilização do corpo.

Vamos tratar de cada hipótese, apresentando soluções:

1) A indústria da Barriga de Aluguel

Em um país como o Brasil onde existem verdadeiros abismos sociais e grande concentração de renda é natural e até necessária a preocupação sobre a possibilidade de se criar uma indústria da barriga de aluguel caso este contrato passe a prever algum tipo de remuneração. Não seria exagero se presumir que os contratos poderiam ser firmados com vontades viciadas oriundas de um estado de necessidade de qualquer ordem em que possam se encontrar quaisquer das partes contratantes.

E numa gravidez de substituição ambas as partes podem estar em “estado de necessidade” tanto a futura mãe pelo desejo cego de realizar sua maternidade, quanto a gestante por necessitar da remuneração combinada.

Além disso, os valores exigidos poderiam tanto ser ilimitados, ocasionando uma verdadeira extorsão aos pretensos pais e, ao contrário, poderiam ser ínfimos ocasionando uma extorsão dos pretensos pais à gestante em função de algum desbalanceamento econômico.

Nesse cenário esse estudo encontra algumas soluções que podem afastar esse “temor nacional”:

Assim como na adoção, seria indispensável numa gravidez de substituição que a futura gestante fosse submetida a um processo perante o órgão competente no qual seriam feitas entrevistas, visitas e análise de documentação por parte de assistentes sociais que ao final a habilitariam a firmar um contrato de gravidez de substituição.

Já para proteção da mãe, seria imprescindível que o Estado estabelecesse um teto quando a gratificação for financeira, para se evitar a cobrança de uma contrapartida abusiva por parte da futura gestante, como acontece nos Estados Unidos hoje.

Dessa forma, ao fim e ao cabo a doação temporária do útero não deixará de ter o cunho altruístico hoje exigido pelo CFM, apesar de remunerado, até porque a futura gestante já saberá o máximo que poderá auferir antes mesmo de se candidatar ao procedimento que a habilite.

A partir do momento que o Estado permita, ele pode evitar que uma indústria se forme.

2) Se teme que a gestante ao firmar o contrato, ainda não estando grávida, não tenha condição psicológica de obrigar-se a entregar o bebê que gerou porque é durante a gravidez que podem ser criados vínculos afetivos entre gestante e feto.

A fim de se evitar que possíveis vínculos afetivos sejam criados, o que parece um pouco inverossímel já que as relações jurídicas familiares são construídas através do afeto e o afeto exige convívio, é bem verdade que depois que a medicina avançou ao ponto de realizar a fertilização in vitro, deixou de existir a necessidade de se alugar “útero + óvulo”. Segundo Debora Spar, professora na Harvard Business School, agora se pode adquirir “o óvulo de uma fonte (incluindo, em muitos casos, a mulher que pretende ser mãe) e o útero de outra (...) Ao remover a relação tradicional entre óvulo, útero e mãe, a gravidez de aluguel reduziu os riscos legais e emocionais que cercavam a gravidez por encomenda tradicional e permitiu que um novo mercado florescesse.”

É fato que tal medida não é suficiente para que a sensação de maternidade não se aflore, podendo ocasionar problemas no momento do cumprimento final do contrato com a entrega da criança, mas certamente a desvinculação genética minimiza consideravelmente os danos psicológicos que porventura sujam desta relação.

Portanto, esse estudo defende ser condição legal que a futura doadora de útero, em hipótese alguma, tenha qualquer vínculo genético com o embrião que irá gerar em seu ventre.

Essa cautela pode ser imposta agora simplesmente porque a medicina avançou. Nesse momento, não há mais necessidade que a doadora do ventre seja, também, a doadora do óvulo e, inexistindo essa necessidade procedimental, não há porque se arriscar que eventual drama psicológico que acometa a gestante tenha caráter, também, genético.

Ademais, deve ser obrigatório que a futura gestante já tenha tido um filho para no momento de firmar o contrato ter consciência do que significa uma gestação. Isso é muito importante.

3) O temor pela coisificação da criança

É possível se coisificar uma criança? Talvez sim, mas não através de um contrato de gestação de substituição porque esse contrato é motivado pelo desejo inequívoco do contratante de ter um filho.

Todo o trabalho que se tem para fazê-lo nascer através de uma gravidez de substituição já pressupõe, no mínimo, o quanto esse filho foi desejado, o que muitas vezes não acontece nas relações ditas naturais, ou não assistidas.

Ainda mais no Brasil, onde o planejamento familiar ainda é precário como comprova pesquisa publicada no Jornal O Globo, de 20 de Fevereiro de 2012, que afirma que consulta, iniciada há dois anos e baseada em entrevistas e coleta de informações de 22 mil mulheres, mostra que só 45% queriam realmente engravidar. Tal pesquisa foi encomendada pelo Ministério da Saúde deste país e coordenada por Maria do Carmo Leal da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz.

Nesse cenário, falar em coisificação da criança chega a ser irônico.

Além disso, o valor acertado pela gravidez de substituição não se refere à precificação da criança, por ser isso impossível.

O que há é a precificação do aluguel do útero. Como bem afirmou o juiz Harvey R. Sorkow responsável pelo julgamento do caso conhecido como “Baby M”, famoso nos Estados Unidos: “Em um nascimento, o pai não compra o bebê. Ele é seu filho biológico e carrega sua herança genética. Uma pessoa não pode comprar aquilo que já é seu.”

Nesses casos, o pagamento é feito por um serviço – o aluguel- e não pelo produto – o bebê.

Isso é muito claro.

Finalmente, chegamos ao último temor avaliado nesse estudo:

4) A mercantilização do corpo.

É certo que o Estado não pode intervir no meu corpo pelo simples fato desse ser meu.

Entretanto, é longa a discussão acerca das liberdades individuais, muitas delas já bastante discutidas como é o caso do aborto, da eutanásia, da venda de órgãos e do próprio suicídio.

Esses temas são demasiadamente complexos. Ocorre que no caso em tela, a gravidez de substituição, não se inclui em nenhuma das hipóteses polêmicas acima porque todas ela tratam de questões terminativas. Quando se fala da venda de um órgão se fala em jamais recuperá-lo. Quando se fala em aborto ou eutanásia, se fala em morte.

Esse estudo trata da vida. O aluguel do útero é um aluguel. O útero continuará a ser da gestante e ela poderá seguir dispondo de seu órgão. Não há uma renúncia e, portanto, essa hipótese não se enquadra no que se chama de mercantilização do corpo.

A medicina evoluiu bastante como visto, mais ainda não criou uma chocadeira de bebês humanos. Um dia, isso pode ser uma realidade, quem sabe?

O fato que é hoje o útero é o único meio capaz de gerar um filho e, por isso, não resta a quem deseja ser pai e mãe, nenhuma outra solução que não seja alugar este órgão de quem tem.

Considerações Finais

Muita gente questiona sem propriedade as escolhas alheias que tratam exclusivamente das vidas alheias. Quem acha que adotar é uma opção, critica toda a logística que envolve uma doação temporária de útero.

Acontece que adotar é uma opção. E alugar o útero de outrem, ainda não.

Cada família deveria poder optar pela forma que lhe for mais adequada para suprir o desejo da maternidade ou paternidade.

Porém, hoje, quem não se enquadra ao restritíssimo rol de possibilidades do CFM, acaba caindo num vazio.

Estamos falando aqui de um direito personalíssimo, íntimo mesmo. E, portanto, a intervenção do Estado, figura tão distante desse desejo essencialmente pessoal, deveria ser, apenas, a de normatizar o contrato da gravidez de substituição, gerando segurança aos contratantes e diante da prova do contrato já permitir aos pais contratantes o registro do bebê em seus nomes tão logo saiam da maternidade.

Quem aluga a barriga é, na verdade, um prestador de serviços e o romance que se cria acerca dessa pessoa e sua ligação com o feto são temas que servem, apenas, para inviabilizar a prática e afastar esse recurso de milhões de pais, sem filhos.

É preciso que se tome cuidado com os termos que se criam para as novidades porque a maioria deles já vem carregados de preconceitos tão expressivos que acabam por fulminar ou ofuscar uma visão mais clara e livre das coisas, fazendo com que tudo tarde a acontecer e – algumas vezes – não aconteça.

O termo “mãe de aluguel” por exemplo certamente fez com que anos se passassem sem que ninguém voltasse os olhos para a gravidez d substituição pela carga emocional nele embutida. Jamais houve na vida uma mãe de aluguel. Ou a pessoa é mãe, ou a pessoa não é mãe. Ser mãe não é um conceito. Ser mãe é um estado.

Seria muito mais simples que se enfrentasse essa realidade e as inúmeras possibilidades que a medicina disponibiliza e a questão passasse a ser avalizada de forma prática, objetiva e segura para todos os envolvidos.

Eventuais fatalidades que possam ocorrer na gravidez prejudicando a saúde da gestante são, como dito, riscos e o contrato é essencialmente um contrato de prestação de serviço que envolve risco de vida.

Nesses termos, o que vier a comprometer a vida da gestante deve garantir a ela o direito de interromper a gravidez. Já todas as questões relativas ao feto e que não comprometam a vida da gestante, devem ser decididas pelos futuros pais contratantes. Como acontece em uma gravidez normal.

Quem paga alguém para gerar seu filho não é mais mãe, nem menos mãe.

Quem recebe para gerar o filho de outrem não é nenhum mercenário, muito pelo contrário, é um realizador de sonhos, é uma varinha de condão e precisa ser gratificado por isso, de forma combinada e contratada entre as partes.

As maternidades diante do recebimento deste contrato tem que fornecer o documento especificando quem é a mãe da criança que nasceu (mãe biológica) e quem é a pessoa que a gerou.

O cartório deve fazer uso desse documento para registrar corretamente aquele filho.

É tudo, na verdade, muito simples.

Difícil é o que os médicos fazem para fecundar um embrião em seu laboratório e o implantar em um ventre são. Difícil era se imaginar que a medicina iria ser capaz de dar um revés no destino de várias famílias fadadas a não verem nascer seus filhos.

Cabe ao Estado, assegurar que as partes contratantes cumpram com sua parte no acerto. Cabe sim, ao Estado, dar à mãe biológica o documento que a permita registrar o seu filho em seu nome tão logo ele respire. O direito de o levar em seus braços na saída do hospital e exercer a sua maternidade de forma plena.

Cabe ao Estado garantir à quem alugou a sua barriga o seu direito de exigir a gratificação combinada com a outra parte contratante. Cabe ao Estado, proibir o registro da criança pela pessoa que alugou a barriga.

Cabe a toda a sociedade a reflexão sobre a vida. Sobre a sua própria vida. Sobre a vida de seus descendentes. Sobre a liberdade e o direito que cada um tem de ver nascer a sua descendência e de criá-la de forma, igualmente, livre.

SUGESTÃO PARA A MUDANÇA DA RESOLUÇÃO DO CFM:VII - SOBRE A GESTAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO (DOAÇÃO TEMPORÁRIA DO ÚTERO)

As clínicas, centros ou serviços de reprodução humana podem usar técnicas de RA para criarem a situação identificada como gestação de substituição, desde que exista um problema médico que impeça ou contraindique a gestação na doadora genética.

1 – Qualquer mulher em idade reprodutiva e até os 40 anos poderá doar temporariamente o seu útero, uma única vez, desde que:

- Já tenha um filho, nascido de gestação anterior;

- Apresente boa condição de saúde a ser comprovada através de um atestado por um médico credenciado ao CRM;

- Esteja habilitada para tanto.

2 - A doação temporária do útero poderá ser gratificada, desde que:

2.1 – Quando a gratificação for financeira, não seja superior a $$$ salários mínimos federais.

3- A doadora de útero não poderá, em hipótese alguma, ter qualquer vínculo genético com o embrião que irá implantar em seu ventre.

4 – Antes do início das técnicas de RA, as partes interessadas: Doadora do útero e Doadores do material genético deverão firmar contrato registrado em registro público, perante tabelião com fé pública para credenciar as condições impostas nesta resolução e tal documento credencia os doadores do material genético a registrarem o filho em seu nome após o nascimento.

5- Durante a gestação, qualquer problema de saúde atestado por médico escolhido pelas partes no contrato mencionado no item “4”, que venha a comprometer a vida da gestante, dará a ela o direito de interromper a gravidez;

6- Durante a gestação, qualquer decisão acerca da sobrevivência do (s) feto (s), e desde que não comprometam a saúde da gestante, será tomada pelos doadores do material genético.

________________________________________

Autora: Diana Pope[1] Advogada formada há 12 (doze) anos pela PUC/RJ. Integra, como formadora e aprendiz, o Grupo de Advocacia Colaborativa organizado em 2011. Formou-se em práticas literárias na “Escuela de Letras de Madrid” em 2007, onde aprimorou seu texto jurídico às práticas literárias. Além da prática processual nas Varas de Família desta cidade, ainda realiza trabalhos e palestras sobre a adequação das novas técnicas de reprodução assistida ao direito de família.

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